Grémio Lusitano

O Palácio do Grémio Lusitano

 

A Aquisição

Com a constituição da sociedade Grémio Lusitano, em 13 de março de 1879, verificou-se a necessidade de encontrar uma sede que desse satisfação às necessidades associativas dos seus membros. Os próprios estatutos contemplavam já essa possibilidade, ao determinar que “A Sociedade poderá adquirir, por meio de compra ou edificação, uma casa própria para seu estabelecimento e dependências” (Estatutos Grémio Lusitano).

A escolha do espaço para albergar a sede do Grémio Lusitano viria a incidir sobre um edifício, que a escritura descreve como estando “situado na rua da Atalaia e freguesia da Encarnação, números antigos 133 e 134, e moderno 150, e com esquina e frente também para a Travessa do Guarda-mor números 15 e 16 antigos, e 35 e 45 modernos, a qual propriedade se compõe de pavimento ou rés do chão ou duas lojas, com quintal no fundo, dois andares e águas-furtadas” (Escritura do Palácio do Grémio Lusitano).

Em 17 de novembro de 1879, num escritório no n.º 50 da Rua da Áurea, é assinada a escritura de compra e venda do futuro Palácio do Grémio Lusitano. Como representante legal, estão presentes Miguel Baptista Maciel, Jesuíno Exequiel Martins, Eduardo Augusto Craveiro, Eduardo Amourous e João d’Atouguia França, na qualidade de presidente, secretário, tesoureiro e órgãos da direção. O Palácio é adquirido por um valor de doze contos e oitocentos e sessenta mil reis.

Os antigos proprietários eram Carlos Augusto de Mascarenhas Relvas e Campos, proprietário agrícola e fotógrafo, e Margarida Amália Mendes d’Azevedo e Campos, pais de José Relvas, uma das figuras mais icónica do republicanismo e da I República.

Em maio de 1880, o Grémio Lusitano instala-se no Palácio e aos poucos o espaço vai ganhando vida e dinamismo.

 

O Palácio

Parte integrante da malha do Bairro Alto, o Palácio, de estilo maneirista, destaca-se pela sua monumentalidade.

De volumetria sensivelmente paralelepipédica, e planta quadrangular com 3 pisos. A cobertura é efetuada por telhados a 4 águas. A fachada principal encontra-se a norte e é caracterizada por fenestração distribuída a um ritmo regular com preocupações de simetria. Ao nível do piso térreo, contam-se 6 vãos de porta. A porta principal é a primeira no sentido este-oeste e apresenta decoração mais elaborada; emoldurada a cantaria e rematada com friso triangular trabalhado. Os restantes 5 vãos de porta são de carácter mais simples, emolduradas a cantaria e de verga reta. O 2º e 3º pisos são idênticos entre si, e contam em cada um deles 8 janelas de sacada guarnecidas por grades de ferro de varas verticais com anéis a meia altura. Todas estas janelas se encontram alinhadas na vertical com os vãos existentes no piso térreo. O outro alçado visível encontra-se a oeste, e a sua leitura global é idêntica à da fachada principal embora conte com menos aberturas de vão (apenas 5). O encontro dos alçados efetua-se por meio de um cunhal de cantaria de feição maneirista, o qual a partir do 3º piso se prolonga em alvenaria.” (Sistema de informação para o Património Arquitetónico, classificado no Bairro Alto).

Se o seu exterior é altamente impactante, o interior é marcado por detalhes e pormenores que enriquecem a história deste edifico. Na década de 60 do séc. XX, o historiador de arte e especialista na área do azulejo João Miguel dos Santos Simões fez um levantamento ao património azulejar do Palácio. Por referência à atual sala Magalhães Lima, sita no 2º piso, João Miguel dos Santos Simões descreve-a como “um silhar de 13 azulejos de altura policromo com ornamentação fitomórfica, no género dos azulejos do Palácio do Páteo das Vacas. A coloração é intensa, especialmente os verdes. Notável conjunto dos meados do séc. XVII.”. Numa outra descrição da mesma sala, dá conta de “painéis ornamentais de grande desenvolvimento decorativo e policromia que chega a ser violenta. São azulejos dos tipos que se encontram por exemplo no Museu Agrícola do Ultramar e dos que eram do Palácio da Praia de Belém, agora no Museu do Azulejo”. Numa outra sala, no mesmo piso, encontra um “silhar de 8 de altura azulejos com os padrões azuis (P. 401 azul e c. 67 azul). Julgamos que a azulejaria é da mesma época, se bem que tão diferente, e que esta se situa por cerca de 1680.”. (Biblioteca de Arte Gulbenkian, Ficheiro do Inventário da Azulejaria de J. M. dos Santos Simões).

Apesar da escritura do edifício datar de 17 de novembro de 1879, o primeiro pedido de obras e requalificação do espaço submetido junto da Câmara Municipal de Lisboa é de maio de 1879, tendo como construtor o mestre de obras José Pedro Martins. O pedido é, então, deferido em 6 de fevereiro de 1880, com um termo de conclusão de 24 meses, prazo esse que vai ser alvo de várias prorrogações.

Projeto de arquitetura do Palácio, sede do Grémio Lusitano, 1879 (AML)

Projeto de arquitetura do Palácio, sede do Grémio Lusitano, 1879 (AML)

Em julho de 1897, é submetido (e aprovado pelos Serviços de Obras Municipais) um novo projeto de ampliação e alteração do edifício. A ampliação previa o acrescento de mais um andar e a reestruturação de algumas das salas mais emblemáticas. A magnitude da obra implicou a contração de um novo empréstimo no valor de 16 200 réis junto da Companhia Geral de Crédito Predial (Boletim Oficial do GOLU, Série de 1897, Novembro). O resultado destas obras irá caracterizar a traça arquitetónica do edifício que hoje conhecemos.

Projeto de arquitetura de ampliação e alteração do Palácio, 1897 (AML)

Projeto de arquitetura de ampliação e alteração do Palácio, 1897 (AML)

A vivência do Palácio acompanhou o apogeu do republicanismo e o nascimento da República. Foram anos de grande atividade, com a promoção de um grande conjunto de iniciativas cívicas e de uma participação massiva na esfera pública. Ao longo da década de 10, essa pertinência iria manter-se: com a instabilidade política que se foi instalando, o Palácio continuou a ser palco de acontecimentos absolutamente centrais da sociedade portuguesa.

O Sidonismo

Depois de várias tentativas de assaltos e invasões, na noite de 8 para 9 de dezembro de 1918, um grupo de militares e civis invadem o edifício. A biblioteca, os arquivos, a secretaria, todo o Palácio é totalmente vandalizado, deixando um rasto de destruição.

Perspectiva da vandalização dos serviços administrativos do Grémio, 1918 (AML)

Perspectiva da vandalização dos serviços administrativos do Grémio, 1918 (AML)

 A Ditadura

O fim do Sidonismo e o término da I Guerra Mundial não foram sinónimos de acalmia e estabilidade para o país. Os esforços de guerra, a pressão económica e a instabilidade política culminaram no golpe militar de 28 de maio de 1926. Mais uma vez, o Grémio Lusitano e a sua sede são atacados. Em 16 e 17 de abril de 1929, as forças de Polícia e da Guarda Republicana cercaram o palácio e detiveram cerca de meia centena de sócios, que ficaram encarcerados no Forte de Monsanto.

Em 18 de Maio de 1930, é encerrado o Palácio do Grémio Lusitano por ordem do Ministro do Interior, o Coronel Lopes Mateus, antigo sócio do Grémio Lusitano. Ao longo de mais de cinco anos (1929 a 1935), “a direção fez várias diligências para se conseguir que fossem respeitados os direitos da sociedade Grémio Lusitano legalmente constituída, com estatutos aprovados e respetivo alvará do Governador Civil de Lisboa” (Ata de reunião da Direção do Grémio Lusitano, 30/12/1933).

Em 21 de maio de 1935, a Lei 1.901, interdita as “Sociedades Secretas” e o Grémio Lusitano é espoliado da sua sede e dos seus bens: nos termos dos artigos 2.º e 4.º daquele diploma, “São considerados secretos, devendo ser dissolvidos pelo Ministério do Interior: a) As associações e institutos que exerçam a sua actividade, no todo ou em parte, por modo clandestino ou secreto”, determinando-se, consequentemente, que “Os bens das associações e institutos dissolvidos, nos termos do artigo 2.º, serão arrolados e vendidos em praça e o seu produto reverterá para assistência pública”.

Dois anos depois, em 21 de janeiro de 1937, o Ministro do Interior Mário Paes de Sousa ordena “o encerramento da associação denominada Grémio Lusitano, com sede em Lisboa, por haver fortes suspeitas, se não a certeza, de que, apesar de se tratar de uma instituição legalmente constituída e com estatutos devidamente aprovados, à sombra dessa legalidade exercia outras atividades clandestinas a que os estatutos não faziam referência e que eram contrários aos princípios fundamentais do Estado” (Portaria, sem número, Diário do Governo n.º 22, II Série, 27 janeiro 1937).

Ato de arrolamento dos bens do Palácio pela Fazenda Nacional, 03/04/1937 (Revista arquivo Nacional, n.º 275)

Ato de arrolamento dos bens do Palácio pela Fazenda Nacional, 03/04/1937 (Revista arquivo Nacional, n.º 275)

No mês seguinte, no dia 18, é publicado em Diário de Governo, I série, a Lei 1.950, que concretizou a entrega dos bens do Grémio Lusitano à Legião Portuguesa, aí se prescrevendo que “Os bens, já arrolados, pertencentes à dissolvida associação de recreio Grémio Lusitano, com sede na rua do mesmo nome, em vez de terem a aplicação que lhes é fixada na lei n.º 1:901, de 21 de maio de 1935, serão entregues à Legião Portuguesa, que deles tomará posse quando lho convenha”.

A máquina eficaz da repressão funciona e em 20 de março, um despacho do Ministério das Finanças autoriza a Direção-Geral da Fazenda Pública a fazer a entrega do Palácio e do seu recheio à Legião Portuguesa. Em 16 de abril, são ali instalados os serviços de Ação Social e Política da Legião Portuguesa.

Começava uma noite longa que iria durar até à madrugada libertadora de 25 de Abril de 1974.

 

 A restituição e o retorno à Liberdade

O 25 de Abril colocou o fim a quase cinquenta anos de opressão e, desde logo, a comissão gestora do Grémio Lusitano, composta por Luís Ernani Dias Amado, Armando Adão e Silva e José Eduardo Simões Coimbra, procurou restituir a sede e os bens apossados ilegitimamente pelo Estado Novo. No dia 5 de maio de 1974, lançam um comunicado no jornal a declarar a pertença do edifício ao Grémio Lusitano “… cumpre-nos esclarecer publicamente que o edifício da Travessa do Guarda-Mor, n.º 25, ao Bairro Alto, em Lisboa, é exclusiva propriedade da aludida Associação e que só por acto inconstitucional, revelador da autêntica usurpação, vinha sedo [sic] ocupado, condenável e ilegitimamente, pela extinta organização fascista «Legião Portuguesa».”

Dois dias depois do comunicado e na sequência dos esforços então desenvolvidos pela comissão gestora do Grémio junto da Junta de Salvação Nacional, esta declara que o Palácio é pertença do Grémio Lusitano e que a partir dessa data é devolvida a propriedade do imóvel.

A partir desse momento, começou todo um processo de recuperação de direitos perdidos desde a década de 30. O passo seguinte foi a regularização do edifício na conservatória do Registo Predial. Em 23 de junho de 1975, a direção do Grémio Lusitano apresenta um pedido de alteração da matriz do prédio, aí dando conta de que “só indevidamente se mostra inscrito na matriz o referido prédio em nome da extinta “Legião Portuguesa” e isso em resultado da ilegal usurpação por parte desse organismo fascista”. Armando Adão e Silva ficou responsável pelo acompanhamento do processo.

O decurso do tempo deixou as suas marcas e o que fora então um Palácio imponente e majestoso encontrava-se, agora, abandonado, decrépito e despido dos seus bens. Com um número de sócios que não chegava à centena e meia, e tendo a seu cargo obras de beneficência como o Internato de São João e instituições escolares, a direção do Grémio Lusitano deparava-se com grandes dificuldades para realizar as grandes e avultadas obras de recuperação e reabilitação de que o Palácio precisava e que ficaram a cargo da sociedade de construções Amadeu Gaudêncio.

Foi, por isso, em boa altura que, em 31 de dezembro de 1976, é publicado em Diário da República o Decreto-Lei n.º 929/76, concedendo uma indemnização ao Grémio Lusitano, por força da ocupação do Palácio durante um período de mais de 30 anos.

Tal como aí se pode ler: “A sede do Grémio Lusitano, em edifício próprio, foi abusivamente ocupada e entregue, em 1937, à Legião Portuguesa, que ali se manteve até 25 de Abril de 1974. Readquirindo o edifício, em grande parte destruído, teve o Grémio Lusitano, de proceder a grandes obras de reconstrução no montante de 1500 contos, dos quais é ainda devedor de 1000 (Valor atual de 120.565,29€), carecendo também, além disso, de proceder ao restauro e substituição dos bens que constituíam o recheio do imóvel, cujo valor é estimado em 1500 contos (Valor atual de 180.847,94€); (…) É autorizada a concessão de um subsídio de 2500 contos (Valor atual de 301.413,23€) ao Grémio Lusitano, a título de indeminização definitiva, por todos os prejuízos que lhe foram causados pela ocupação do edifício próprio da sua sede até 25 de Abril de 1974”.

Ao longo dos anos, o Palácio tem vindo a beneficiar de um conjunto de intervenções, restauros, reestruturações e adaptações do espaço tornando-o mais acolhedor a todos os que o frequentam e participam nas múltiplas atividades de índole cultural que ali se realizam. O Palácio alberga o Museu Maçónico Português, a Biblioteca e o Arquivo Histórico do Grémio Lusitano.

 

A Toponímia

Todas as ruas têm uma história e a da rua do Palácio do Grémio Lusitano não é somenos interessante e intricada.

Encontramos as primeiras referências relativas à rua (ou travessa) no livro “Corografia portugueza e descripçam topografica do famoso Reyno de Portugal”, do Padre António Carvalho da Costa, numa descrição da freguesia da Encarnação, aí assinalando que “Conta esta freguesia de mil e quinhentos vizinhos, e de seis mil pessoas, que se dividem pelas ruas seguintes. … travessa do Relógio”. A Travessa do Relógio ficava mesmo em frente da torre do relógio da Igreja de S. Roque.

O nome da travessa vingou e não é de estranhar que ainda no início do século XIX ainda encontremos referências àquela toponímia: “E é curioso observar que esta denominação, mais velha do que a outra, subsistia ainda para algumas pessoas em 1810, como se pôde ver de um aviso de leilão na Gazeta de Lisboa n.º 313 de 31, de Dezembro de 1810; aí se convoca o público para a rua do Relógio de S. Roque n.º 4 (“Lisboa Antiga, O Bairro Alto”, de Júlio Castilho, pág. 128).

A travessa ou rua do Relógio passou a designar-se Travessa do Guarda-mor, segundo Júlio de Castilho: “parece-me provir de um Guarda-mor da Relação, a quem foi aforado em dias de el-Rei D. Afonso VI um chão naquele sitio”. (“Lisboa Antiga, O Bairro Alto”, de Júlio Castilho, pág. 128).

Com a compra do Palácio do Grémio Lusitano na referida travessa, vai ser submetido um pedido, junto da Câmara Municipal de Lisboa, por iniciativa de José Elias Garcia, para a alteração do nome da rua. Em janeiro de 1888, por edital camarário, a Travessa do Guarda-mor passa a denominar-se Rua do Grémio Lusitano.

Depois da espoliação do Palácio, o Estado Novo rasurou a denominação da Rua. Por deliberação e edital da Câmara Municipal de Lisboa, de 12 e 19 de agosto de 1937, respetivamente, a Rua do Grémio Lusitano retomou a sua designação anterior de Travessa do Guarda-mor.

Será, somente, após a Revolução dos Cravos que a rua voltaria ao seu nome anterior. Por edital de 10 de outubro de 1977, publicado no Diário Municipal n.º 12754, de 21 de outubro de 1977, a Travessa do Guarda-mor voltou a denominar-se Rua do Grémio Lusitano, topónimo que mantém até aos dias de hoje, marcando indelevelmente esta artéria do Bairro Alto em homenagem aos milhares de sócios do Grémio Lusitano que no passado lutaram e hoje continuam a pugnar pela Liberdade e pela Democracia.